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Arquivos Estrutura - Sandra Filardi

 Aplicação prática do conceito de “Obra Aberta”

Como aplicar concretamente o conceito de “obra aberta” analisando uma pintura de Rubens

Por Francisco de Assis Portugal Guimarães Universidade Federal da Bahia. Museu de Arte Sacra

Umberto Eco propôs o modelo teórico de “obra aberta” que não representasse uma mera cópia da estrutura de determinadas obras. Propôs um conjunto de relações fruitivas que permitissem a comunicação entre o observador e o objeto fruído sob o impulso da mensagem estética. O objetivo deste trabalho é aplicar concretamente o conceito desta estrutura de “obra aberta”, na análise de uma pintura de Rubens. Do ponto de metodológico, trata-se de um estudo exploratório e bibliográficos. Dentro dos limites propostos pelo conceito de “obra aberta”, fez-se uma leitura da pintura. Por se tratar de uma obra barroca, permite ao fruidor múltiplas possibilidades interpretativas, com variadas alternâncias de foco. Na condição de intérprete, esta experiência proporcionou atos de liberdade consciente no entendimento da obra objeto da fruição.

Como Umberto Eco define “Obra Aberta”

A “obra aberta”, segundo Umberto Eco (2008), estimula no intérprete uma cadeia de entendimentos e interpretações espontâneas, porém conscientes. Permitindo-lhe, por meio de inúmeras possibilidades, uma maneira própria e pessoal de entendimentos. Sem que estes estejam condicionados por padrões ou normas pré-estabelecidas tradicionalmente a conduzi-lo na organização do objeto passível de fruição.

Fruição

Ação de aproveitar ou usufruir de alguma oportunidade. Utilização prazerosa de algo; gozo.

Experiência

Proporcionou atos de liberdade consciente no entendimento da obra objeto da fruição.

Semiótica

A semiótica estuda as significações que podem ser atribuída aos fatos da vida social. Neste estudo, estes fatos — imagens, gestos, sons melódicos, elementos rituais, mitos, entre outros — são concebidos como sistemas de significação.

Roland Bartes (1989) entende que a semiologia é uma parte da linguística.  Na medida em que toma a seu cargo as grandes unidades significantes do discurso. Em seu campo de possibilidades há também o projeto de ser aplicada a objetos não-linguísticos. É exatamente na perspectiva de aplicação da semiótica a objetos não-linguísticos, que podemos analisar uma obra de arte, aplicando o conceito de “obra aberta” de Umberto Eco.

Objeto deste Estudo

O objeto deste estudo é a representação artística da Sagrada Família. Produzida pelo pintor  Rubens (1577-1640), do acervo do Richart Museum, Colônia, Alemanha. Optação por esta obra por ser um dos marcos mundiais da arte em estilo barroco. Este período artístico considerado neste estudo, marcou significativamente boa parcela da arte sacra colonial brasileira.

Barroco

O barroco na arte é um estilo que permite-nos alternativas que rompam com os valores clássicos de “acabado” e “definido”. Oferecendo-nos um campo visual mais abrangente de possibilidades fruitivas, ampliando e flexibilizando nossas disponibilidades para a prática dos sentidos e ao agrado da inteligência. São inúmeras e variadas alternativas dadas ao olhar numa arte. Esta exprime em suas massas, nas misturas de suas cores e tonalidades repletas de luz e sombras.

O objetivo deste trabalho é aplicar concretamente o conceito desta estrutura denominada de “obra aberta”, de Eco. Análise da pintura de Rubens, sob novas alternâncias de foco. Trata-se de um estudo exploratório e bibliográfico.

Considerações

Gil (2002, p. 41), para o qual o estudo exploratório tem como propósito “[…] o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuições”

“Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. “ (GIL, 2002, p. 44).

Segundo Eco (2008), a inquietude barroca é considerada como a primeira manifestação inequívoca da cultura moderna. Pela primeira vez o homem tem uma ação de se esquivar dos ditames dos cânones.  Assim na arte e na ciência, é estar defronte de um universo em movimento que exige dele ações inventivas “[…] que vê na obra de arte, não um objeto baseado em relações evidentes, a ser desfrutado como belo, mas um mistério a investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à vivacidade da imaginação” (ECO, 2008, p. 45).

Objeto Analisado: Uma Pluralidade de Significantes

A pintura de Pieter Paul Rubens retrata a Sagrada Família (Jesus, Maria e José), ladeada por João e Isabel.

“obra aberta”- Estudo Obra Rubens
Sagrada Família – Estudo da composição

Rubens registra nesta obra a grandiosidade dos valores estéticos do barroco. Evidentes na imperiosidade dos volumes, nos trajes das personagens, nas formas grandiosas das figuras, na belíssima concepção de texturas e na excepcionalidade da luz.

Perspectiva Analítica 

Na perspectiva analítica de “obra aberta”, entendemos que o pintor quis que a cena estivesse inserida dentro de um ambiente carregado e sombrio, com o fundo se perdendo nos limites de uma noite nebulosa. Dentro dessa aura nevoenta e quase irreal, os personagens assumem atitudes, acendem luzes no quadro. Permitem, através de uma relação visual mais rica de possibilidades fruitivas, o descortinamento de sua abertura.

O Casal

Concebidos num plano recuado, porém próximo, um casal idoso discretamente destaca sua silhueta. O homem é visto quase frontalmente, encoberto parcialmente pela mulher. Seu talhe escuro destaca-lhe o rosto numa área de sombra e acentua um olhar atento e intrigado. Enquanto o braço estendido deixa à mostra uma mão possante e até rude. Esta carregada de energia e segurança. A se apoiar ou, quem sabe, a deter talvez num gesto de constante proteção algo indefinível, diluído e camuflado dentro da penumbra.

A Anciã

Ocupando um espaço mais iluminado, emerge a anciã de maneira contida e serena aos olhos do espectador. Seu rosto irradia uma placidez etérea, como a de um ser celestial, glorificado. Seu olhar, preso a um ponto comum ao olhar do homem, tem, entretanto, uma imobilidade atenta. Por instantes, sua mão, num gesto decidido, tenta conter ou impede o impulso da criança que lhe está mais próxima. O propósito dela é de não permitir que nada aconteça além daquele momento, onde um espetáculo deslumbrante parece se desenrolar ante seus olhos e do qual quisesse fruir completamente, sem interferências.

Mas que impulso será esse que leva o pequenino a romper, a desequilibrar aquele instante de veneração profunda, fazendo a mulher idosa sair do seu estado hipnótico de adoração e colocando talvez aquela ruga na testa do homem que espreita silenciosamente?

A Criança

A criança que se insinua num impulso, está de perfil.  A intensidade do olhar que ela projeta em direção à mulher jovem, sentada a sua frente, é perfeitamente captada pelo espectador. Este sente que este olhar esconde tanto ou mais do que manifesta. Que seria preciso mergulhar em profundidades inatingíveis para tentar decifrá-lo. Ao mesmo tempo que sugere uma súplica, um pedido, parece alertar, anunciando algo.

A Mulher Jovem

Quanto à jovem, contida no seu estado de êxtase profundo. Parece não se surpreender ante aquela interrupção espontânea e lhe retribui o olhar serenamente. A partir desse exato momento, quando seus olhos se cruzam e se superpõem, um diálogo se inicia em perfeita sintonia. Dispensando a linguagem falada, todo um processo se desencadeia. Envolvendo nessa reciprocidade uma rede infinitamente complexa, humanamente inimaginável de entendimentos e correlações.

Foco de atenção

Cumpre, no entanto, atingir o cerne de toda essa atenção. Este centro de referências, em torno do qual gravitam esses rostos atentos. Sem dúvida nenhuma, é o foco direcional e tema principal no qual se ordena e se compõe toda a representação. Facilmente é identificado, em forma de criança, pousada suavemente no colo da mulher jovem. Afastado no momento de pausa do seio que lhe é oferecido como fonte de vida ou, quem sabe, numa atitude implícita da mulher, de querer alimentar a si própria. Irradiando, pois, tanta luz, é essa criança a figura mais visível da representação. Abrindo-se numa claridade que lhe brota do interior. De lá se espalha aos borbulhões, banhando a todos, delineando rostos, corpos e formas…

Está ele, pois, com o rosto virado, a cabeça inclinada levemente por sobre o ombro. Olhando para a frente, fixando um ponto invisível, fora do quadro, enquanto seu braço direito apenas toca o ombro da mulher. Com certa displicência, numa atitude de total independência, indiferente a todos que o circundam, senhor absoluto do seu controle e domínio. É preciso reconhecer que esta indiferença leva a que se concentre a atenção nele. A mulher só se iguala ao seu gesto, quando, displicentemente, segura entre os dedos da mão esquerda uma fina linha.  Colocando-o como ponto intermediário entre o gesto do menino à sua frente e a atitude do pássaro, como uma figura simbólica, preso a essa linha que conduz ou limita seu voo em direção à profunda escuridão, povoada de mistérios insondáveis.

O Olhar do Menino

Poderíamos, com efeito, adivinhar o que o menino olha fixamente? Dos seus olhos até aquilo que ele olha está traçada uma linha reta, que se localiza ou se prende a um ponto, o qual podemos determinar. Este ponto, sem dúvida, somos nós, os espectadores, que nos achamos diante do quadro. Varados por este olhar incômodo, inevitável, como uma seta de ponta brilhante que se crava firmemente no local desejado. Mergulha sem relutâncias no invisível do nosso interior, atingindo recantos antes indevassáveis.

Ultrapassando esta referência constituída do olhar do menino como um centro deslocado da cena e prosseguindo. Observamos que, na sua criação, o pintor dispõe as figuras de tal forma, que nos permite compor um estudo, inserindo-o dentro de uma série de figuras (ver imagem: Sagrada Família – Estudo da composição). Uma seria um “X” definido pela linha que parte do olhar da anciã em direção ao menino sentado. Esta linha se cruza com a que, saindo do olhar do menino de pé, encontra o da mulher jovem. Outra seria um grande triângulo, cujos vértices se limitam nos olhos das crianças e do homem.

Resulta, portanto, da combinação destas duas figuras uma série de outros triângulos menores.  Quase todos eles, seus vértices coincidentes com os olhos dos personagens. Estimulando-nos a múltiplas e variadas possibilidades, através de novas direções e leituras, num constante processo de recriação, por meio da alternância de focos, na plenitude total da sua contínua e renovada abertura.

Conclusão

Em meados do século passado, Umberto Eco propôs um modelo teórico de uma “obra aberta” que não representasse uma mera cópia ou reprodução da estrutura de determinadas obras, mas um conjunto de relações fruitivas que permitisse a comunicação entre o observador e o objeto fruído sob o impulso da mensagem estética.

O objetivo deste trabalho foi aplicar concretamente o conceito desta estrutura denominada de “obra aberta”, na análise da pintura de Rubens.

Aplicação do Conceito de “obra aberta”

A aplicação deste conceito de “obra aberta” em uma pintura barroca de autoria de Rubens permitiu-nos o exercício intelectual de fruição na condição de observador. Utilizamos uma sequência de entendimentos permitidos pelas inúmeras possibilidades e variadas alternativas dadas ao olhar. De uma maneira pessoal e criativa de leitura e interpretação consciente, sem nos limitarmos e/ou condicionarmos por normas e regras estabelecidas pela tradição que viessem conduzir e limitar a nossa fruição em relação à obra de arte observada.

Assim, guiados pelo conceito proposto de “obra aberta” fizemos uma leitura da pintura. Em especial por se tratar de uma obra barroca, permitiu múltiplas possibilidades interpretativas, com variadas alternâncias de foco. Na condição de intérprete, esta experiência proporcionou “atos de liberdade consciente” no entendimento da obra objeto da fruição.

Ressaltamos que apesar de passados mais de meio século desde que foi proposta esta conceituação de “obra aberta” e apesar dos avanços nas teorias de comunicação verificados em todo esse período, a proposta de Umberto Eco de “abertura” do objeto estético permanece atemporal. Isto porque ela se sedimenta naquilo que é visceral no ser humano: a sua liberdade de expressão, de pensar e fantasiar sua realidade, seus sonhos e suas inquietações. Ao estimular à assunção da responsabilidade e à escolha individual, o discurso sobre a possibilidade de uma fruição “aberta” da obra de arte constitui-se em um desafio e um estímulo ao ser humano, para que desenvolva sua percepção, sua imaginação e sua inteligência.

Referências

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. Lisboa: Edições 70, 1989. Coleção Signos 43.
CONTI, Flavio. Como reconhecer a arte barroca. São Paulo: Martins Fontes, 1984. ECO, Umberto. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Debates; 4).

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
RUBENS, Pieter Paul. Gênios da pintura. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1973.

O estudo completo deste texto você encontra aqui.

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